Vítima Do Destino
Imagem retirada da internet |
Vítima do Destino
Perdido em seus
pensamentos, Rafael monologava o passado de sua família contado por alguém que
conhecera. Queria que ninguém passasse momentos difíceis como os vividos em
outras épocas por seus familiares, que foram vitimas ou testemunhas de uma
sociedade machista, sem leis, que não valorizava a mulher, a qual não era dado
o direito de escolher o próprio esposo, nem ao menos de administrar seus
sentimentos. Tempos cruéis à mulher, esposa e mãe, que apenas tinha deveres e
não direitos.
Os esposos eram
escolhidos pelos pais ou familiares mais próximos a fim de satisfazer vaidades,
negócios, transações ou vinganças. Foi assim no final do século XIX, em certo
lugar onde viveram os antepassados de Rafael.
Naquela noite de
insônia, os seus familiares, que não conheceu e dos quais guardava fotografias,
foram passando um a um como em um filme, demorando-se em Josefa sua tetravó,
resolveu contar um pouco da vida dela para que outras pessoas pudessem avaliar
o caráter e a garra daquela grande mulher presa nas malhas do destino.
Era outono, Dona
Cândida terminara de arrumar a mesa para o jantar. Suas filhas Ana e Josefa, ao
lado da mãe, estavam tristes sem saber o motivo. No rosto de Josefa as marcas
de uma noite mal dormida. De repente,
irrompe na sala o pai, Sr. Lafaiete, parecendo estar muito feliz. Com
entusiasmo chamava a filha mais nova.
- Josefa! Josefa!
Descobri o genro que pedi a Deus. Josefa ficou ainda mais triste e não se
conteve disse: - Papai, papai, por favor! Não quero me casar agora, sou muito
jovem, tenho apenas 16 anos!
O Pai com toda
arrogância de um chefe de família mal educado, respondeu: - Não quero saber,
quem manda nesta casa a nesta família sou eu, sou o chefe e pronto. Já escolhi
o seu marido e não adianta chorar nem pedir. Amanhã, o rapaz virá aqui para
marcarmos a data de casamento.
No dia marcado para o
pedido, o Sr. Lafaiete mandou que Josefa vestisse o melhor vestido, penteasse
os sedosos cabelos e aguardasse a chegada do futuro noivo. Josefa tinha de
obedecer ao pai e ao futuro marido... eram as leis daquele tempo.
O pai aguardava com
ansiedade quando na porta da frente, soaram palmas. Era ele, o pretendente, Sr.
Venâncio, com seu terno de linho branco, cabelos bem penteados e muita vontade
de conhecer a noiva.
Mesmo aborrecido com o atraso do futuro genro e fazendo ver a ele que a palavra do homem valia tudo, aceitou suas desculpas e chamou a mulher e a filha para as apresentações. Josefa teve de fingir-se de alegre para que o pai não tivesse um acesso de raiva.
Mesmo aborrecido com o atraso do futuro genro e fazendo ver a ele que a palavra do homem valia tudo, aceitou suas desculpas e chamou a mulher e a filha para as apresentações. Josefa teve de fingir-se de alegre para que o pai não tivesse um acesso de raiva.
Foi acertado o
casamento para dali a um mês. A moça, debulhando-se em lágrimas, conversou com
sua grande amiga e pediu-lhe que avisasse ao namoradinho do tempo da escola
primária, Zezinho, o acontecido. Este, após a notícia, passou a perambular
pelas ruas do povoado cantarolando o nome de Josefa. Nunca mais comeu...
definhou até morrer.
Tudo transcorreu
naturalmente, os dias longos e silenciosos, as noites turvas e profundas. Até
que chegou o dia do casamento. Josefa foi para o altar com um pesar de morte. Ferida
em seus sentimentos, era como boi conduzido ao matadouro... o seu coração
sangrava de angústia.
Enquanto lá fora os
sinos anunciavam o casamento, do lado de dentro, à beira do altar, Josefa
implorava aos céus a proteção divina.
- Minha Nossa Senhora,
interceda por mim, faça com que esse casamento não se realize Por favor, Minha
Santa Mãe!
De nada adiantou, o seu
destino estava traçado e foi feita a vontade do Pai. Muito choro, abraços e
lamentos.
Depois do casamento, da
festa para os convidados, mudaram-se para uma casa emprestada e, daquela data
em diante, as más qualidades do marido foram aparecendo. Era um dormir que não
acabava nunca. Não tinha profissão, os trabalhos que apareciam não eram
realizados, e assim, nenhum dinheiro entrava naquela casa pelas mãos do marido.
A família não passava fome porque o sogro ajudava e Dona Josefa trabalhava por
ela e pelo marido, procurava convencer o marido da necessidade de fazer alguma
coisa e de refletir na grande responsabilidade de um chefe de família, mas ele
era irredutível e estava sempre falando:
- Quando a gente tem
que ser rico, não precisa fazer força.
Os filhos foram
chegando: um, dois, três, já eram sete. Mesmo sem gostar de trabalhar queria a
casa cheia.
- Como é bom ter muitos
filhos e ficar atrapalhado com os seus nomes, dizia.
Dona Josefa entrou de
corpo e alma no trabalho para poder criar os filhos.
Não queria sempre estar
pedindo ajuda ao pai, que acompanhava de perto a vida inútil do genro.
A Cada ano chegava mais
um filho e nada de mudanças, nada de procurar um trabalho que o dignificasse. O
sogro resolveu abrir o jogo, conversou com o genro, fez indagações, ofereceu
ajuda e falando nos filhos ouviu dele.
- Deus dá, Deus cria...
Não havia mais o que
fazer. O Sr. Lafaiete pediu à filha que acabasse com o casamento, pois eram
muitas as suas preocupações em relação ao futuro dos seus netos e prometeu
auxiliá-la com a educação e criação das crianças. Josefa, com toda mágoa que
lhe ia na alma, fez ver ao pai que ele era o culpado, pois quis assim,
escolhendo o seu marido sem conhece-lo, apenas por aparências. O pai
indignou-se com a resposta da filha.
- De agora em diante
lavarei as minhas mãos, não quero nem saber dos acontecimentos de sua casa,
porque você é o balaio e ele a tampa.
A pobre filha, chocada
com o que ouvia, chorou e pensou: - meu pai foi que escolheu a tampa.
As cobranças eram
muitas e a coragem pouca, o marido não queria mudar e resolveu abandonar, sem
aviso prévio, os seus familiares, viajando para os garimpos de Mato Grosso.
Nunca deu notícias. A mulher estava grávida do 8º filho, o caçula. Depois do
abandono desdobrou-se para tentar fazer às vezes de pai e mãe, cuidando da
cozinha e dos filhos, costurando e tecendo grandes redes. Trabalhava de segunda
a domingo, sem descanso, dormia poucas horas na noite e trabalhava enquanto os
filhos dormiam. Esforçava-se para satisfazer a curiosidade deles em relação à
viagem do Pai. Os vizinhos intrigados diziam:
- Você não respeita nem
os domingos, trabalha dia e noite.
- É melhor trabalhar no
Domingos do que pedir na Segunda.
E assim ela tampava a
boca dos murmuradores.
A princípio, mãe e
filhos preocupavam-se com a falta de notícias. Á medida que os anos foram passando
a família foi se acostumando com a ausência do Sr. Venâncio e, assim, a vida
continuava com dificuldade. Os meninos faziam mandados e trabalhos leves para
os vizinhos e conhecidos. As meninas bordavam e vendiam colchas, toalhas,
guardanapos e assim ganhavam algum dinheiro para completar o minguado orçamento
familiar.
Em Mato Grosso o Sr.
Venâncio vivia mal, não tinha notícias dos seus familiares e há muito se
arrependera, mas era tarde. A vida muito difícil, era preciso medir as palavras
para conversar, não passar para frente o que ouvia dos outros garimpeiros
porque as mortes aconteciam em todos os lugares: nos barracões, nos quartos, no
trabalho e nas ruas. Era difícil passar um dia sem corpos estendidos nas ruas
daquele garimpo inumano.
Dias e dias o Sr.
Vicente ficou deitado, doente, sem remédios, mal alimentado, sem ter quem
cuidasse dele e esperando a qualquer hora, a morte que não vinha. As dores eram
muito fortes, dores físicas e dores morais. Nos momentos de reflexão, pensava
em sua família e como a tinha deixado tão covardemente. Na Bíblia, encontrou
abrigo e fortalecido pela palavra desejou a cura, só pensava em voltar e
reparar o seu erro.
Num Domingo, recebeu a
visita de uma irmã de caridade que depois de alimentá-lo quis saber quem ele
era, de onde vinha, se tinha família, quantos filhos e por que não se esforçava
para voltar ao lugar de origem. O Sr. Venâncio, muito emocionado, contou a sua
história, elogiou sua esposa, manifestou a vontade que tinha de rever os filhos
e de conhecer o caçula que, naquele ano, completaria 11 anos.
Irmã Amália ouviu
atentamente o relato do infortúnio daquele arrependido homem e depois de
abraçar o desconhecido, aconselhou-o a escrever para a família pedindo perdão e
para que os filhos fossem buscá-lo. Ele disse que tinha muita vergonha e receava
não ser atendido pela mulher e filhos, porque já os tinha maltratado muito. A
irmã falou-lhe da humildade e pediu-lhe que tentasse.
Depois de muito
refletir, ele resolveu escrever com muito esforço, uma longa carta. Depois de
saudar seus antes queridos, desfazia-se em lamentos. Contava toda sua vida após
a saída de casa. Pedia perdão pela falta de coragem e pela ingratidão. Contou
das doenças, da falta de solidariedade naquele garimpo, dos assassinatos que
amedrontavam, da malária que matava centenas de pessoas todos os anos e
afirmava não ter adquirido nada pela falta de sorte. No final da carta, falava
do seu estado de saúde o pior possível. Pedia perdão e implorava a caridade da esposa
e dos filhos, porque estava doente, cego e morrendo à mingua.
Josefa recebeu a carta
e depois de muito pensar, chamou os filhos e pediu-lhes que empreendessem
viagem a Mato Grosso e trouxessem o pai deles para que ela o tratasse, não como
esposo, mas como um ser humano que precisava dos seus cuidados.
- Mas um trabalho
extra, mais uma preocupação. Pensou.
Apesar de todos os
cuidados dos familiares, o Sr. Venâncio morreu depois de seis meses de sua
volta. Não sobreviveu porque o organismo já não correspondia a nenhum
tratamento. Morreu pedindo perdão. Mãe e filhos sentiram-se aliviados por terem
praticado uma boa ação, embora o Sr. Venâncio já fosse quase um estranho.
Passaram-se algumas
décadas, D. Josefa já não precisava trabalhar para viver, na sua velhice fora
contemplada com certo conforto vindo dos filhos que ela soubera educar. Era
muito querida, e todos os familiares disputavam a sua companhia. Escolheu a
casa do filho mais velho para morar, pois era muito amiga da nora e esta a
compreendia em todos os momentos.
Muitas luas vieram e
foram embora e, aos oitenta anos, com muitos netos e bisnetos, vitimada por um
acidente, a mulher guerreira despediu-se dos seus e partiu para não mais
voltar, transformando-se apenas em um exemplo, uma doce lembrança.
Aliviado das suas
recordações e ao som do primeiro galo na madrugada, Rafael olhou mais uma vez a
fotografia de Josefa e sobre ela, adormeceu.
Adalgisa Nolêto Perna
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