VIDA CONTURBADA

Foto by Madel Perna

VIDA CONTURBADA

Demorados suspiros quebravam o silencio daquela mansão. A família composta de pai, mãe e dois filhos não era feliz. Vivia sufocada na inquietude e devaneios da dona da casa.

Tinha conforto, era bela e ao seu lado tinha um marido carinhoso e compreensivo. Os filhos eram saudáveis e podia estar ao seu alcance tudo que não se pode comprar ou vender, a felicidade.

O marido já não sorria como antes, pois ao seu lado estava uma mulher nervosa e assustada.
Os anos se passaram, as crianças cresceram e o casal, um dos mais prósperos da cidade, não era feliz.
Marjory muito simpática encontrava amigos com facilidade, mas as amizades eram descartadas em pouco tempo porque existia nela desânimo para conservar amigos.

Alguém disse: “essa mulher é amargurada de corpo, alma e coração. Pode ser que eu me engane, mas há um grande segredo que a envolve, alguma coisa que seus amigos e familiares ainda não tiveram a capacidade de desvendar.”

A monotonia e a rotina tornavam fácil o distanciamento. Já não sonhava e nem tinha esperanças. Era o que se chamava de desligada do mundo em que vivia.  O marido pensava: ela já não é mais aquela com quem me casei, tímida, mas ainda se comunicando com seus familiares e pessoas com as quais convivia. Pensava na impossibilidade da convivência com aquela mulher cada dia mais estranha.

Desde o início do casamento  Marjory dormia mal, atordoada por pesadelos: esmurrava a cama, debatia-se, tremia, encolhia-se a um cantinho, dava gritos, pedia socorro e depois de longos minutos acordava aliviada.

O marido sentia-se intrigado com o sofrimento da mulher e perguntava-lhe se queria ir ao médico, consultar um psicólogo, fazer análise e tirar do coração o que tanto lhe amargurava. Ela respondia que não necessitava de médico e que era apenas o modo de ser de cada pessoa. Tinha afinidade com todos os filhos, mas a caçula, a Regina era sua companheira predileta.

Conversavam muito e a filha pediu à mãe que lhe contasse como foi a sua infância pois adorava ouvir história de vida, principalmente dos seus familiares e em especial de sua mãe.  Marjory desconversava e dizia: filha, minha infância foi igual à qualquer menina do interior e completava: na minha infância não tem nada digno de  se notar. Regininha encorajava a mãe para falar do que a atormentava. Mãe,  estou preparada para ouvi-lá pode ter confiança, esvazie-se do que a aflige e só assim terá vida normal.

O medo era muito grande, a coragem como que a abandonava quando pensava na possibilidade de ter de dividir com os outros o seu segredo...

Cansada de sofrer, chamou a filha e depois de abraçá-la, perguntou-lhe: Filha, se eu lhe contasse algo terrível  que me aconteceu no passado você ainda gostaria de mim? A filha com todo amor e carinho respondeu: minha mãe fique tranquila, pois nada no mundo fará diminuir o amor e admiração que eu tenho por você, e não será por um erro do passado que irei desprezá-la.
Encorajada pela filha e estudando o que lhe ia na alma, resolveu acabar de vez com o que não lhe deixava ser feliz. Chamando a filha de lado, pediu que ela se preparasse para ouvir o que pensava nunca conseguir coragem de contar para ninguém, o seu terrível segredo, guardado a sete chaves, no fundo do coração.
Filha, foi há muito tempo, eu era penas uma garotinha de oito anos. Vivíamos alegres, brincávamos juntos eu e meus irmãos. Meus pais viviam em paz, apenas trabalhavam muito.

Tinham fazendas e para desenvolvê-las e aumentá-las viviam com a casa cheia de peões, homens que vinham de todas as partes a procura de trabalho. No meio dos trabalhadores existia um homem alto, lábios grossos, pés grandes e sem nenhuma instrução. Era daqueles que fazem medo  às crianças apenas pela sua presença. O homem, com toda a brutalidade que lhe era peculiar começou a me molestar. Menina inocente tremia de medo quando via ao menos a sombra daquele brutamontes que eu pensava ir me matar. À medida que me molestava estava sempre a me ameaçar: “você tem que ter cuidado até com os sonhos e não pode contar pra ninguém o que aconteceu.

Tem que ficar caladinha... se contar, será o seu fim, seu pai vai lhe matar de pancadas, você vai ser expulsas de casa, não terá pra onde ir e eu apodrecerei na cadeia se não me matarem antes.” Tremendo, eu prometia não contar e o medo aumentava no meu coração de menininha quase bebê. Foi assim que fui vítima da crueldade de uma pessoa rude e inescrupulosa que não arruinou apenas a minha vida porque os seus pais nunca souberam daquele acontecimento nefasto que abalou para sempre a vida de uma pessoa que começava a viver.
No meu tempo de criança uma situação como a que eu vivi era muito difícil, pois os pais distanciavam-se dos filhos, não havia comprometimento nem intimidade entre eles. Nem por sombra atrevia contar para minha mãe o que eu pensava ser um grande pecado, julgando-me suja para o resto da vida.
Ao se abrir com a filha, aquela mulher  tão sofrida deitou e pela primeira vez depois de muito dormiu em paz.

Marjory estava aliviada, mas ainda faltava completar sua tranquilidade.
Com a ajuda da filha, resolveu consultar um analista que a ajudou com sua orientação.
Cada dia, os fantasmas que atormentavam aquela jovem senhora iam se distanciando mais.

O analista explicou para ela que o sofrimento das crianças que foram vítimas de abuso sexual, é não conseguirem contar o que se passou com elas, porque se julgam culpadas e diferentes das outras. É preciso contar para que os culpados sejam punidos e impedidos de abusarem de outras crianças. Ele falou ainda que são muitas Marjorys espalhadas por todo país, divergindo apenas no modo como foram molestadas e como encararam o problema, revoltando-se, ficando de mal com a vida, pedindo apoio aos familiares e às autoridades, ou fazendo os seus corações transformarem-se em pedras de gelo.

Foram duas as fases da vida de Marjory, uma antes e outra depois da análise.

Após tudo isso, ela foi se transformando e aos poucos os fantasmas que a atormentavam deixaram-na para sempre.

Em uma reunião familiar, todos contribuíram para fundarem uma instituição de apoio a criança vítimas de abuso sexual, estendendo a ajuda a seus familiares.
Marjory muito alegre, abraçando o marido e os filhos, deu os primeiros passos para que a obra se realizasse com êxito e em tempo hábil.
A instituição recebeu o nome de “Passo a passo com amor.”
 Adalgisa Nolêto Perna





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